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domingo, 29 de maio de 2011

Reflexões sobre a Lei 12.010, conhecida como Lei da Adoção

O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Acolhimento Familiar

Propercio Antonio de Rezende (1)

A recente Lei 12.010, promulgada em 3 de agosto de 2009, já conhecida como a ‘Lei da Adoção’, representa a maior revisão ou atualização que o Estatuto da Criança e do Adolescente já recebeu. Em seus quase 20 anos de existência, o ECA passou por diversas atualizações e adequações, modernizando-se e sofrendo ajustes em pontos que mostravam necessidade de revisão ou de melhoria, porém, nunca uma lei alterou ou incluiu tanto conteúdo ao Estatuto. A ‘lei da adoção’, apesar de ter este nome, poderia também ser chamada de ‘lei da convivência familiar’, pois não aborda somente questões diretamente ligadas à adoção, ainda que este seja o grande foco.
Trata, por exemplo, de alguns pontos relacionados ao abrigamento de crianças e adolescentes, que passa a ser chamado de Acolhimento Institucional, e inclui uma nova medida de proteção, no artigo 101, chamada Acolhimento Familiar.
Pretendo, neste texto, oferecer algumas reflexões e informações básicas sobre esta nova medida, sem a mínima pretensão de esgotar o assunto ou de apresentar uma abordagem extremamente técnica. Ao contrário, procurarei a linguagem coloquial e a abordagem que interesse a todos os que convivem ou trabalham com crianças e adolescentes, e não somente aos profissionais da área do direito ou da garantia de direitos.

O ECA e a Convivência Familiar

A convivência familiar sempre foi posta em posição de destaque pelo Estatuto, mostrando claro e efetivo posicionamento legal contra as antigas instituições de abrigamento, conhecidas como internatos, orfanatos ou educandários.
Ao ser promulgado, em 1990, o ECA inovou a forma de vermos estas questões, ao trazer uma regulamentação bastante clara em relação ao abrigamento. Assim, podemos destacar, como exemplo, o parágrafo único do artigo 101 que enfatizava a medida de abrigamento como “provisória e excepcional”. Ou ainda o artigo 23 que nos diz que “a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do poder familiar (2)”, indicando, em seguida, no seu parágrafo único, que não havendo fato que motive a retirada da criança de sua família ela deve permanecer, sendo a família apoiada através da inclusão em programas de auxílio.
Merece destaque, também, a própria inclusão da convivência familiar e comunitária entre os direitos fundamentais descritos no livro I do ECA, mostrando que esta convivência é tão essencial a uma criança ou adolescente como são a educação, a saúde, o lazer ou os demais direitos básicos (todo o capítulo III do ECA vai tratar da temática do direito à convivência familiar e comunitária).
Conceito de Família
Nos últimos 19 anos a temática do direito à convivência familiar teve uma atenção nunca vista na nossa história, valendo citar aqui a publicação, em 2006, do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (3), pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, depois de ampla discussão realizada em nível nacional, com a participação de especialistas e militantes da área do direito e da assistência social.
O Plano Nacional traz o detalhamento do tema da convivência familiar e comunitária, complementando e aprofundando o assunto com base nas diretrizes do ECA. Neste plano vemos, por exemplo, a retomada dos conceitos de família trazidos no ECA e na Constituição Federal (4) e, em seguida, a orientação de que:
“Estas definições colocam a ênfase na existência de vínculos de filiação legal, de origem natural ou adotiva, independentemente do tipo de arranjo familiar onde esta relação de parentalidade e filiação estiver inserida. Em outras palavras, não importa se a família é do tipo “nuclear”, “monoparental”, “reconstituída” ou outras (5).”
Ampliando a discussão, o mesmo documento vai nos alertar de que, apesar de esta definição ser suficiente do ponto de vista legal, “torna-se necessário desmistificar a idealização de uma dada estrutura familiar como sendo a ‘natural’”, ou seja, o Plano Nacional nos chama a atenção para as diversas possibilidades de organização familiar que temos hoje, indo além dos laços de sangue, para mostrar que é preciso reconhecer a diversidade de organizações familiares, indicando que:
Torna-se necessária uma definição mais ampla de “família” (...). A família pode ser pensada como um grupo de pessoas que são unidas por laços de consangüinidade, de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos por representações, práticas e relações que implicam obrigações mútuas (6).

Como vemos, é fundamental que tenhamos clareza de que a família, numa linguagem muito coloquial, pode ser vista como o grupo de pessoas que se unem para organizar a sua subsistência e a ajuda mútua necessária a ela. O conceito de família, assim, vai abarcar as relações de cuidado e um nível de parentesco que vai além de pais e filhos, para ampliar-se na chamada “família extensa” (avós, tios, primos etc). O Plano ainda coloca a importância de considerarmos as “redes sociais de apoio”, definidas como grupos de pessoas sem laço de parentesco, mas com uma função social de auxílio, como alguns vizinhos muito ligados à criança ou adolescente, por exemplo.

Não é o objetivo deste texto aprofundar a temática do conceito de família, mas apenas citá-la, chamando a atenção para a importância de uma receptividade efetiva em relação a estas novas conformações familiares cada vez mais comuns nas nossas comunidades. É fundamental que percebamos que, apesar e independente de como avaliamos estas novas famílias, elas são uma realidade e assim devem ser vistas, com suas limitações e potencialidades, permitindo abordagens e relações não preconceituosas por parte dos profissionais que as atendem ou que atendem as crianças e adolescentes ligados a elas.

Processo de Mudança
À luz da reflexão sobre o conceito de família, e orientados pela sua valorização no Estatuto da Criança e do Adolescente, podemos perceber como, lentamente, ao longo destes quase 20 anos, viemos caminhando para a superação das condições institucionalizantes nas quais viviam as crianças e adolescentes nos já citados orfanatos, educandários ou internatos.
Independente da variação de nomenclatura e de princípios de gestão (muitas casas seguiam padrões determinados, por exemplo, por concepções ideológicas ou religiosas), estas instituições se assemelhavam muito na ausência das relações de proximidade, praticamente inexistindo qualquer tipo de atendimento individualizado. As crianças ou adolescentes (ou “internos”, como eram chamados em muitos lugares), não possuíam oportunidade de exercitar a sua individualidade como pessoas, sendo tratadas como massa que devia obedecer a regras padronizadas e rígidas, independente de qualquer situação peculiar que a criança apresentasse. Horários rígidos, filas, pratos padronizados e, muitas vezes, até uniformes, transformavam as crianças e adolescentes em pessoas que, apesar de abrigadas, não poderiam ser consideradas acolhidas no sentido mais puro da palavra.
Oportunamente a nova lei altera o nome da medida de “abrigo em entidade”, para “acolhimento institucional”. Este tem sido o desafio de muitos abrigos. Transformar ou flexibilizar as exigências próprias das instituições que são, buscando formas mais acolhedoras e individualizadas de atendimento. Apesar de grandes esforços e de avanços consideráveis (e esta é uma temática que por si só já gerou inúmeros estudos e publicações), ainda não é possível afirmar que um abrigo possa ser tão bom quanto uma família, não porque os profissionais destas instituições não se esforcem para isso, mas porque são duas “instituições” conceitual e essencialmente diferentes.
Família é família e abrigo é abrigo. Ainda que estejamos falando de situações de relações humanas, nas quais os conceitos não são estanques ou exatos, não há a menor possibilidade de afirmar que “tal abrigo é tão bom como uma família”. É uma contradição conceitual. Se ele é um abrigo, nunca vai ser uma família, ainda que seja um ótimo abrigo, ou o melhor abrigo que consigamos desenvolver. Esta é a questão fundamental que nos leva à excepcionalidade e à potencialidade das chamadas famílias colhedoras, regularizadas como medida de proteção a partir da nova lei de adoção (7).
A medida de Acolhimento Familiar
O acolhimento familiar tem como objetivo proteger a criança e o adolescente que esteja em situação de risco e que, por algum motivo, precise se afastar do convívio familiar. Várias razões podem motivar o acolhimento: os pais podem estar cumprindo pena, hospitalizados ou serem autores de violência doméstica, por exemplo. Esta última modalidade, no Brasil, é a mais comum. Neste caso, o objetivo é interromper o processo de violência pelo qual crianças e adolescentes passam dentro de casa. São situações nas quais essas crianças e adolescentes se defrontam com diversos tipos de violência doméstica: física, sexual, psicológica ou com situações de negligência.
A família acolhe, em sua casa, por um período de tempo determinado, uma criança ou adolescente que vem sofrendo algum tipo de violência em sua própria família. Isto não significa que a criança vai passar a ser filho da família acolhedora, mas que vai receber afeto e convivência desta outra família até que possa ser reintegrado à sua família de origem ou, em alguns casos, ser encaminhado para a adoção.
Daí a importância dessa modalidade que se insere como uma alternativa ao abrigamento no Brasil. Ao invés do encaminhamento para abrigos, onde as crianças e adolescentes serão tratados numa abordagem coletiva, a família acolhedora consegue respeitar a individualidade dessas crianças e adolescentes, dedicando um olhar responsável e cuidadoso para a resolução de cada problemática em particular.

Em algumas cidades, os programas oferecem auxílio financeiro para a família que acolhe uma criança ou adolescente. Estes valores podem ser fixos ou variar de acordo com a idade do acolhido. É importante lembrar que o profissionalismo da equipe que acompanha as famílias vai evitar a procura por motivos de interesse financeiro. Além disso, os programas também são economicamente mais positivos, pois uma criança colocada em uma família acolhedora custa menos do que uma criança em um abrigo, e é melhor atendida.

É fundamental lembrarmos que o programa não pode prescindir do apoio à família de origem, pois, neste caso, estará incompleto. É importantíssimo que medidas evitem que aconteça com os programas de acolhimento familiar o que vem ocorrendo em muitos municípios, nos quais, após a colocação da criança num abrigo, não há nenhuma ação efetiva para que ela volte para a sua família de origem, levando a situações, infelizmente muito comuns, de crianças e adolescentes que ficam abrigados durante anos. Nesse sentido, a lei 12.010 também estabeleceu algumas medidas visando a diminuição do tempo de abrigamento de crianças e adolescentes.
Origens
A intenção de oferecer convívio em um modelo familiar não é novidade. Já em 1949, na Áustria, o estudante de medicina Hermann Gmeiner criava as Aldeias Infantis S.O.S. nas quais, no lugar de grandes instalações, mães sociais cuidam de até dez crianças em uma casa pequena, tendo maior conforto e atenção personalizada (8). Na verdade, o princípio básico do que hoje chamamos de “família acolhedora” remonta à própria organização social do homem, afinal, sempre houve famílias que assumiram a proteção e educação de crianças órfãs ou desabrigadas, o que acontece, inclusive, em aldeias indígenas. Enquanto programa de atendimento, somente em 1979 é que o projeto Família Hospedeira, da Sociedade do Bem-Estar do Menor, em São José dos Campos (SP) surge de forma pioneira.
Características
O que a medida incluída no Estatuto vem colocar, e este é um aspecto fundamental, é que deve se tratar de um “programa” de acolhimento familiar, ou seja, a medida não significa a simples transferência da guarda de uma criança ou adolescente a uma família qualquer, como ainda acontece com frequência, muitas vezes como alternativa para pequenas cidades que não possuem abrigo, mas sim, da criação de um serviço, de um programa com todas as implicações que isto requer. A formalização da medida, como programa, irá requerer, por exemplo, o mínimo do acompanhamento por profissionais da área, de preferência uma equipe multidisciplinar.
Isto minimiza os possíveis problemas que ainda preocupam os resistentes a este tipo de acolhimento, como, por exemplo, a dificuldade da família que acolhe uma
criança, especialmente crianças mais novas ou bebês, no momento de seu retorno à família de origem. Muitos juízes recorrem a este argumento para oferecerem resistência à medida.

Além do fato do apoio e acompanhamento profissional, que deve ocorrer em todo o processo, desde a seleção das famílias, minimizar estas questões, é preciso considerar que os traumas vividos em instituições, por nossas crianças e adolescentes, são extremamente maiores. Por mais que uma criança tenha algum sofrimento ao ter que se distanciar da família que a acolheu por algum tempo, seja para voltar à sua família de origem, seja para ir para a adoção, este sofrimento não se compara ao vivenciado nos abrigos, onde a criança chega e é atendida por um grupo de estranhos, com alta rotatividade profissional e, na maioria das vezes, sem nenhuma atenção especial durante este processo de adaptação. A família acolhedora, ao contrário, terá dedicação muito mais efetiva à criança que receber e, sabendo desde o treinamento pelo qual deverá passar, que não se trata de uma adoção, com o devido apoio profissional, saberá superar a separação desta criança, inclusive levando em conta a importância do apoio oferecido, que é inestimável.
Boas Experiências
Os projetos de famílias acolhedoras vêm se espalhando com mais rapidez desde o ano 2000, tanto em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas (considerada referência neste tipo de projeto (9), Recife ou elo Horizonte, quanto em cidades de médio porte, como Ourinhos, com 104 mil habitantes, ou Franca, ambas no interior de São Paulo, Balneário Camboriú, em Santa Catarina, e também em pequenas cidades como Piên, no interior do Paraná, com apenas 10 mil habitantes. Em São Bento do Sul (SC), município com 70 mil habitantes, o programa foi tão bem-sucedido que o abrigo da cidade foi desativado.
Outros aspectos
Apesar de não ser regra, em muitos casos, a criança ou o adolescente acolhido acaba ficando com a família mesmo depois de completar a maioridade, uma vez que já está adaptado à sua realidade. Em outros, as famílias acolhedoras também apóiam a família de origem da criança, mantendo um forte vínculo, no qual a família que acolhe é referência não somente para a criança, mas para a família de origem, mostrando as ossibilidades de organização familiar, auxiliando de diversas maneiras e, não raro, estabelecendo relações duradouras de amizade, que se mostram como uma variável importantíssima no trabalho de apoio e reorganização da família de origem.
Considerações finais
Os projetos de famílias acolhedoras resgatam a solidariedade própria do ser humano e do brasileiro, sem, no entanto, dar margem para soluções amadoras. Mostra que a junção das forças da própria sociedade, quando bem coordenadas por programas oficiais, que envolvem os vários atores da rede de atendimento, ou do chamado Sistema de Garantia de Direitos, permite que encontremos soluções efetivas e baratas para os problemas da sociedade.

Para saber mais sobre acolhimento familiar ou institucional:

Na internet:
http://arquivo.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=92

Um comentário:

  1. Olá, você postou meu texto, sem meu conhecimento. Não tem problema, mas pode, por favor, incluir meu mini-currículo e meu e-mail? Obrigado e um abraço
    Propercio Rezende

    Pós-graduado em Comunicação Social, atua há doze anos na área da Infância e Juventude. Foi conselheiro tutelar e diretor da Associação de Conselheiros Tutelares do Estado de São Paulo. Possui formação em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pelo CEATS (FIA-USP), onde gerencia cursos para operadores do direito da infãncia na modalidade de Educação à Distância. Possui curso de especialização em Estatuto da Criança e do Adolescente, Violência Doméstica e Direitos Humanos e Mediação de Conflitos – e-mail: properciorezende@uol.com.br

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